Engenheiros enxergam boas propostas no edital da Prefeitura, mas alertam para possibilidade de problemas na execução.
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Ônibus circulam pelo Terminal Bandeira, no centro de São Paulo (Foto: Marcelo Brandt/G1) |
Especialistas nas áreas de transporte público e mobilidade enxergam acertos e erros no edital que pretende orientar a contratação das empresas que vão operar o sistema de transporte público por ônibus em São Paulo pelos próximos 15 anos. Para eles, os polêmicos cortes de linhas de ônibus são necessários, mas não deveriam ser feitos de uma única vez, assim como a retirada dos articulados dos bairros é fundamental, mas faltam corredores.
“Não é transporte de carga em que você só vê as melhores rotas. São pessoas e você precisa considerar outras variáveis. Faça isso com calma, primeiro o estrutural, os corredores, veja o que acontece, o que provocou no sistema”, diz o doutor em Engenharia de Produção pela Universidade de São Paulo (USP) Mauro Zilbovicius.
Em nota, a SPTrans garantiu que "nenhum passageiro será pego de surpresa. Toda e qualquer alteração será iniciada somente após seis meses da assinatura dos contratos e concluída em até três anos".
A Prefeitura de São Paulo publicou a primeira versão do documento em dezembro e ficou aberta às sugestões da população até a última segunda-feira (5). Os próximos passos são avaliar a alteração do documento, enviá-lo à Câmara dos Vereadores para, aí sim, dar início ao processo de licitação com a convocação de empresas e realização de leilões de linhas.
ENTENDA A PROPOSTA PARA MUDANÇAS NAS LINHAS DE ÔNIBUS
Nos dois meses em que o edital ficou disponível para leitura e opiniões, alguns aspectos das propostas geraram controvérsia – entidades ligadas à mobilidade se debruçaram sobre o documento e denunciaram a um órgão federal o favorecimento às grandes empresas, e o anúncio de que 149 linhas serão eliminadas preocupou os passageiros.
Para entender quais são, de fato, os pontos fortes e fracos do edital proposto pela Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes (SMT), o G1 conversou, além de Zilbovicius, com Sérgio Ejzenberg, que atua há três décadas na área de Engenharia de Tráfego, e com o phD em Engenharia Industrial e de Sistemas, Claudio Barbieri da Cunha.
Em linhas gerais, eles apontam:
Pontos positivos
Divisão do sistema permite micro-ônibus nos bairros e articulados nos corredores
Corte de linhas acaba com filas nos corredores de ônibus
Redução do número de ônibus pode descongestionar vias
Mudança na remuneração permite que as empresas deixem de se concentrar em linhas com mais passageiros
Pontos negativos
Faltam corredores e terminais integrados
Anúncio provoca mudança na rotina da população
Contrato por 15 anos é muito longo no caso de um serviço ruim
Passageiro vai encontrar dificuldades para fazer as baldeações
Menor número de ônibus vai aumentar a espera nos horários de pico
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SP tem 1337 linhas de ônibus em operação (Foto: Reprodução/TV Globo |
Divisão do sistema
Em comum, todos especialistas consultados comemoram e reconhecem a proposta de dividir o sistema de transportes por ônibus em três partes: distribuição (dentro dos bairros), articulação (dos bairros para os terminais) e estrutural (dos terminais para percorrer grandes distâncias).
Segundo eles, a mudança traria diversos benefícios, como a substituição de grandes ônibus articulados por micro-ônibus dentro dos bairros e o ganho de tempo para os passageiros, que seguiriam em alta velocidade para pontos distantes da cidade pelos corredores, sem paradas e sem voltas. O problema, contudo, estaria na execução desse projeto.
“Cadê a parte estrutural – corredores e terminais integrados? A construção de corredores é uma obrigação clara para estruturar o transporte por ônibus”, avalia Ejzenberg. “Não se força integração por decreto. Sem arquitetura física você enxuga gelo: as linhas convergem para os mesmos corredores e terminais, e a mudança só gera desconforto nas baldeações, perda de tempo em filas e viagem de pé”, continua o especialista.
O professor doutor Claudio Barbieri, do Departamento de Pós-Graduação de Transportes da Poli-USP, também sente falta de uma conexão entre as três partes do sistema de ônibus.
“A filosofia de estruturar o sistema é interessante, mas precisa avaliar se os componentes que integram esse sistema – os terminais e os corredores, estão conectados”, alerta. “Se o passageiro tiver que chegar ao Terminal Lapa para então seguir seu destino, isso pode significar um desvio grande do seu caminho, descendo todo o centro do bairro, congestionado, comercial, com viário inadequado, embaixo do viaduto, para aí sim trocar de ônibus”, exemplifica o professor, sobre o posicionamento do terminal da Zona Oeste.
A SPTrans disse que a finalidade das propostas para o edital é conseguir proporcionar "viagens mais curtas e menor intervalo entre ônibus" e que, para garantir a eficiência do sistema, "as transferências serão feitas em paradas e terminais com infraestrutura adequada".
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Ônibus com ar condicionado circula no corredor da Avenida 9 de Julho, no centro de São Paulo (Foto: Marcelo Brandt/G1) |
Mudanças nas linhas
Apesar de parecer contraditório, a Prefeitura promete ampliar o atendimento diminuindo o número de linhas em circulação de 1.336 linhas para 1.187. Apenas 44 linhas serão criadas, 260 unificadas, 710 mantidas e 283 alteradas.
As mudanças nas linhas são a maior preocupação da população, de acordo com a Prefeitura. Segundo documento publicado pela gestão, 92% dos questionamentos recebidos até o dia 28 de fevereiro se referiam a essas alterações.
Os especialistas aprovam a ideia, explicam a proposta, mas alertam para os riscos na execução desse projeto.
“A nova configuração das linhas precisa ter uma certa lógica que evite superposição. Conceitualmente, a medida faz sentido - a ideia é diminuir o congestionamento de ônibus nos corredores para ter mais velocidade. O difícil é a execução disso”, explica o professor Claudio Barbieri, da Poli-USP.
“O edital não demonstra de que forma o passageiro vai passar a fazer o transbordo. Tem uma linha emblemática, a 856R-10 Socorro-Lapa, que é muito utilizada. Tem gente que desce na Dr. Arnaldo, tem gente que desce em Pinheiros, no Itaim, no Socorro... Essa linha precisa ser cortada? Não resolveria se fosse encurtada até Santo Amaro? Não podia ter integração na Juscelino? São questões que envolvem vidas; entendo a preocupação da população”, continua.
O engenheiro de produção Mauro Zilbovicius tem uma visão semelhante. “A medida está correta. A operação ideal é mesmo com poucas linhas, parecida com um BRT, com um Metrô – qualquer trem serve porque opera como um carrossel, depressa. Isso aumenta a produtividade do sistema. O novo modelo pode limpar os corredores de linhas”, defende Zilbovicius.
“O problema é que deveria acontecer paulatinamente. Esse contrato é de 15 anos, tem bastante tempo para fazer as transformações necessárias. Não precisava anunciar todas essas mudanças de uma vez, criando uma confusão sobre o sistema de ônibus”, argumenta o professor.
Em nota, a SPTrans diz que as linhas que ficarão serão reforçadas e têm capacidade para absorver a demanda daquelas que forem seccionadas .
Os especialistas aprovam a ideia, explicam a proposta, mas alertam para os riscos na execução desse projeto.
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Passageiros esperam por ônibus no Terminal Bandeira, no centro de São Paulo (Foto: Marcelo Brandt/G1) |
Remuneração das empresas
Outra novidade que o edital propõe é a mudança na remuneração das empresas contratadas, que deixaria de se basear na quantidade de passageiros transportados e consideraria o custo da operação, o envolvimento em acidentes e a opinião dos usuários.
A proposta agrada ao doutor Mauro Zilbovicius que, em última análise, vê uma substituição da coordenação do sistema das mãos das empresas para a SPTrans. O contrato em vigor, segundo o professor, funciona assim: as empresas são remuneradas por passageiro transportado. Na prática significa que ganha mais quem opera nas melhores linhas, nas mais movimentadas.
Assim, quando a SPTrans queria mudar a estratégia e uma linha para melhorar a vida do usuário, não conseguia, as empresas não queriam e não precisavam abrir mão das melhores áreas, já que estava tudo no contrato. Ou seja, o sistema acabava comandado pelas empresas que prestam serviço e não pela SPTrans, de acordo com Zilbovicius.
“Esse sistema ruim que está na rua é fruto desta forma de contratação. Quando você vê um corredor de ônibus como o Francisco Morato-Rebouças, com aquela montanha de ônibus em fila, com linhas sobrepostas, você entende que o primeiro erro foi remunerar por passageiro transportado. As empresas criaram linhas para pescar passageiros”, afirma. “A nova forma do edital permite que a SPTrans possa efetivamente planejar as linhas, já que a quantidade de passageiros deixa de ser importante”, explica o professor de Engenharia de Produção da USP.
Entretanto, para os especialistas, é preciso inteligência e estratégia da SPTrans para configurar essa remuneração por custo de operação. “Cada região tem uma determinada frequência e uma determinada infraestrutura. Isso gera uma variação de região para região no custo da operação, no envolvimento em acidentes e na opinião dos usuários”, analisa o engenheiro Sérgio Ejzenberg.
"Precisa ter uma inteligência, de repente, propondo áreas casadas às empresas – opera uma região com sistema viário bom e outra ruim. Isso calibra melhor a oferta", destaca Ejzenberg. "Caso contrário, as mesmas empresas que já operam o sistema, que têm a informação privilegiada de saber onde dá dinheiro, vão continuar ganhando os contratos. E se o serviço fosse bom, legal! Repete! Não é o caso."
Concorrência
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a Rede Nossa São Paulo e o Greenpeace recorreram à Superintendência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), vinculado ao Ministério da Justiça, para apurar uma suposta falta de critérios para tratar a competitividade no edital de licitação de ônibus da capital, pois as exigências impostas para participação na concorrência só conseguiriam ser atendidas por grandes empresas e até as mesmas que já operam o sistema de transporte na cidade de São Paulo.
"Fiquei muito satisfeito com a carta feita pelas entidades após uma análise profunda do edital, com dezenas de milhares de páginas. Eles quiseram denunciar o risco de domínio econômico no setor e concluíram que não era conversa de gabinete - recorreram ao Cade. Fizeram muito bem", apoio Sergio Avelleda. "A Prefeitura deveria agradecer e parabenizar essas entidades por apontar um problema que não tenha percebido. É uma investigação que beneficia a cidade", continua.
Em fevereiro, a Justiça de São Paulo condenou 12 empresas de construção civil por fraudes em licitações para a construção e instalação da linha 5-Lilás do Metrô. A decisão condenou também o atual secretário de Mobilidade e Transportes da capital paulista, Sérgio Avelleda, que na época da licitação era presidente do Metrô. A decisão é em primeira instância e cabe recurso.
Os especialistas, assim como as entidades, entendem que o edital poderia ser mais aberto à concorrência e destacam alguns pontos sobre este aspecto:
Prazo de contratação:
"As mesmas empresas operando por 15 anos é uma vergonha. Isso em si já é um monopólio. Em Londres, o contrato é de cinco anos; se tiver um bom desempenho ganha mais dois, se não tiver, troca", exemplifica o professor Mauro Zilbovicius, que sugere ainda a abertura para concorrência internacional.
Ampliar concorrência:
"Por que não uma empresa alemã ou chinesa para operar o sistema? Quanto mais concorrência, melhor, menor custo. Tem empresa que opera na Lapa há 100 anos", afirma Zilbovicius.
Falta de especificação:
Sergio Ejzenberg complementa que a Prefeitura propõe aumento de 22 para 29 áreas de cobertura, mas faltou deixar explícito que se uma empresa ganha um lote, ela não poderia ganhar outro para evitar concentração.
Garagens:
No edital, a Prefeitura propõe que as empresas iniciem as operações 120 dias após a assinatura do contrato – neste período, elas devem adquirir garagens próximas aos lotes, caso não possuam, organizar suas frotas, e contratar e treinar os funcionários.
Na avaliação das entidades, este é um dos itens de impedimento da competitividade, pois gera uma condição desigual entre as empresas que operam na cidade e as que desejam iniciar os serviços. A Prefeitura argumenta que a garagem não seria problema, pois todas as garagens da cidade estão declaradas como de utilidade pública. Ou seja, se a empresa ganhadora não puder comprar uma garagem, ela pode mover uma ação de desapropriação para obter uma.
"Já que é tão simples e de interesse público, por que a Prefeitura ainda não desapropriou todas as garagens? Não deixa na mão de quem ganhar. Não é fácil? Não é rápido? Faz nesse prazo. Desapropria e deixa a concorrência aberta", sugere Ejzenberg.
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Terminal Bandeira, em SP, vazio em dia de paralisação de ônibus (Foto: Rogério de Santis/Futura Press/Estadão Conteúdo) |
Redução do número de ônibus
A Prefeitura oferece atualmente 1 milhão de lugares em ônibus e quer ampliar para 1,3 milhão. Ao mesmo tempo, a gestão aposta em uma quantidade menor de ônibus circulando nas ruas, reduzindo a frota de 13,6 mil para 12,6 mil veículos.
O engenheiro Sergio Eizenberg entende que para alcançar essa matemática, os passageiros serão afetados nos horários de pico. "Sim, é possível reduzir a quantidade de ônibus e aumentas assentos. Como? Tira um veículo que transporta 100 pessoas e substitui por um de 180", explica.
"O problema é que no horário de pico, a capacidade do sistema é mantida, mas a qualidade do serviço não será a mesma. Porque com menos ônibus rodando, os intervalos e o tempo de espera aumentam. Faltou calcular o tempo de espera", continua.
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Ônibus com ar condicionado no Terminal Bandeira, no centro de São Paulo (Foto: Marcelo Brandt/G1) |
Conforto e redução de poluentes
Outra proposta do edital é obrigar que 75% da frota tenha ar-condicionado até 2020 e chegue a 100% em 2022. Os ônibus também precisarão ter wi-fi e carregador de celular. Além disso, o secretário dos Transportes Sergio Avelleda garante que o documento está “completamente comprometido” com a redução de emissão de poluentes para que, em 2020, o sistema de ônibus na capital não polua.
Para os especialistas, a promessa é pouco ambiciosa e, inclusive, já deveria ter sido cumprida. “Isso é perfumaria e já deveria ser obrigatório. As tarifas estão sendo pagas e bilhões entram no sistema de transporte todo mês. Ar condicionado tem um custo marginal, mínimo, pequeno, e parece virar pérola no processo. Na verdade é uma vergonha que os veículos ainda não estejam com ar”, avalia o especialista Sergio Ejzenberg.
A opinião do engenheiro é similar a respeito da troca de ônibus por veículos menos poluentes. "Nosso diesel é realmente um dos mais poluidores do mundo e a troca dos veículos é empurrada com a barriga. Os ônibus poluem muito, sim, mas é importante lembrar que temos 15 mil ônibus contra 5 milhões de carros. A mudança mais necessária é no automóvel", continua.
Na visão do engenheiro de produção Mauro Zilbovicius, o problema neste quesito é o prazo muito longo para substituição dos veículos. "Dava para acelerar muito esse processo do combustível fóssil. As montadoras de ônibus estão interessadas em fazer isso. A indústria chinesa que fabrica ônibus em Campinas faz ônibus elétrico no Brasil. A Volvo e a Mercedes já trabalham com isso. A Universidade Federal de Santa Catarina desenvolveu um veículo que roda com energia solar a 200 km/h. Rapidamente pode mudar isso", acredita.
Especialistas avaliam propostas da Prefeitura para ônibus de SP
Positivo | Negativo | |
Divisão do sistema | Micro-ônibus circulam nos bairros, articulados em corredores | Faltam corredores e terminais integrados |
Corte de linhas | Acaba com filas nos corredores, passageiro ganha tempo | Anúncio brusco de mudança na rotina da população |
Mudança na remuneração | Empresas deixam de se concentrar em linhas com mais passageiros | Empresas atuais sabem onde custo do serviço é menor |
Contrato por 15 anos | - | Muito tempo para trocar possível desempenho ruim |
Concorrência nacional | - | Quanto mais concorrência, menor custo |
Aumento de 22 para 29 lotes | Maior área de cobertura de ônibus | Nada impede concentração de lotes por empresa |
Concorrentes devem ter garagens ou desapropriar uma | Fundamental para operação | Prazo curto, de 4 meses, para estruturar serviço |
Redução do número de ônibus | Menos veículos para congestionar vias | No horário de pico, intervalos entre veículos aumentam |
Ar condicionado e mudança de combustível | Conforto e consciência ambiental | Prazo longo para implementar mudanças de baixo custo em uma licitação de bilhões de reais |
Fonte: Sérgio Ejzenberg, engenheiro de Tráfego, Mauro Zilbovicius (USP), e Claudio Barbieri da Cunha (engenheiro de sistemas)
As informações são do G1
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